29/04/15
perto das 13h.
- Nando-
— Ué vai aonde? — Daiane me perguntou
quando passo pela sala.
— Vou até o centro cívico! — respondo.
— Que diabos você vai fazer lá? Não
viu o que aconteceu ontem? — Marlon fala.
— Hoje vai ser diferente, mandaram
tirar o cerco a ALEP — respondo.
— Mandaram, mas não tiraram! — Ane
responde — eu vi na TV, Nando Isso não vai prestar — ela murmura — você já não
pediu a conta na construtora? Amanhã não vai ir no escritório do Marcelo para
pedir emprego? Fica e descansa hoje aqui! Assiste um pouco de TV! — eu olho
para a tela da televisão, por coincidência o jornal está repedindo as imagens
do que se passou na manhã de ontem, manifestantes tentando tirar a viatura que
bloqueava a via publica e a policia despejando spray de pimenta na cara dos
manifestantes.
— Como é que eu vou ficar em casa
enquanto esta acontecendo tudo isso lá fora? — pergunto.
— Eu consigo — Marlon murmura dando de
ombros — A deixa ele — Marlon fala para
Ane, quase a agradeço, mas daí ele continua — ele deve estar precisando de
nota!
— Não é nada disso — respondo
frustrado — vou justa mente para que isso — eu aponto para a TV — não se
repita!
— No que você poderia ajudar? — Marlon
ri — se o choque descer criança, tu vai apanhar.
— Não! é justamente isso, ontem eles
desceram por que não havia muita gente lá na praça, eu vou para fazer volume,
ouvi dizer que estão barrando a passagem dos ônibus do pessoal que vem do
interior se juntar aquele que estão acampados na praça — respondo — hora, se os
do interior não conseguem chegar, nós que estamos aqui na capital temos que nos
unir a eles! — eles me olham sem piscar em uma total imagem de desinteresse —
na verdade vocês deveriam vir comigo, apoiar os professores — nenhuma reação —
a qual é vocês nunca tiveram professores na vida?
— Sabe — Daiane se espreguiça — não
acordei com um espírito revolucionário hoje.
— Também não — Marlon concorda olhando
para a janela — e ainda está frio e chuviscando!
Eu não falo mais nada, saio do
apartamento e faço questão de bater a porta ao fazer.
***
Centro Cívico
Curitiba – PR, 14:30
— Daí cara — Bruno está ao meu lado,
ele estuda comigo, combinamos de nos encontrar ali, belo plano, havia tanta
gente que nós quase nos desencontramos — pensei que não tinha vindo — ele me
fala, é muito difícil de ouvi-lo, muitos gritos — aqui ta meio parado! — ele
grita ao meu ouvido — estamos no início da avenida — vamos lá para frente! Lá
ta mais movimentado!
Eu concordo, estamos muito próximos do
carro de som, aquilo estava me dando dor do ouvido, avançamos pelo meio da
multidão, ouvimos muitos gritos de “FORA BETO RICHA”, pelo caminho. Demoramos quase
meia hora para chegar a praça, onde alguns professores estavam acampados.
Reparo pela primeira vez na assembléia. Quando cheguei ali fiquei sabendo que o
cerco continuava, um absurdo sem tamanho, mas Ane tinha razão, grades cercavam
o prédio da assembléia legislativa do Paraná, a casa do povo esta presa,
policiais militares faziam um cordão de isolamento logo atrás das grades,
lembrei de um vídeo que havia visto ontem na internet os professores dando Bom
dia para eles quando chegavam para ocupar a praça, estava vendo de muito longe
ainda, mas não conseguia acreditar que aquele cordão que via em fotos estava
realmente ali.
— Aqui já está bom — Gritei para
bruno, ele olhou para mim, falou algo, mas não consegui ouvir, ele fez uma
careta e veio mais para perto de mim e gritou.
— Daqui não da nem para ver o
helicóptero!
— Helicóptero! — repeti — por que
diabos um helicóptero estaria aqui perdeu o juízo cara?
— Não ficou sabendo? — ele respondeu —
o governador mandou um helicóptero vir para cá, acho que ele esta com medo do
povo invadir o palácio ele ter que fugir! Ele deve estar por aqui em algum
lugar! — bruno recomeça a andar olhando para os lados procurando algo.
— Estão começando a votação! — ouvi
uma mulher falando do carro de som — Estão começando a votação! — repetiu ela —
fomos impedidos de acompanhar a votação das galerias da ALEP — ela falava, ouvi
vaias de todos, muita gente gritando, uma confusão.
— Cara olha lá! — bruno gritou por
cima dos ombros — parece que o bicho começou a pegar lá na frente! — ele sai
correndo eu vou atrás dele, consigo ver o que ele se referia um empurra,
empurra começava mais para frente, parece que alguém estava tentando pular a
grade os policiais empurravam quem tentava pular e desferia golpes de
cassetetes em que tentasse se aproximar novamente.
— Bruno! — gritei, ele não me ouviu,
os professores lá da frente chamavam outros para forçar o cerco, eu corri e
puxei bruno pela alça da mochila — vamos ficar por aqui mesmo cara — eu falo
estamos em um campo aberto a uns cem metros de onde acontece o empurra,
empurra.
— Qualé nós não viemos para ajudar? —
ele me responde.
— A votação começou! — gritava o carro
de som.
— Viemos apoiar os professores, mas eu
não estou afim de levar uma cacetada na cara — eu respondo olhando para frente,
o bloqueio havia sido quebrado, as grades estavam sendo arrancadas, os
policiais recuavam desferindo golpes a torto e a direito — tenho uma entrevista
de emprego amanhã, não posso ir machucado!
— O clima começa a esquentar agora
aqui na frente da assembléia — um repórter passa ao meu lado falando ao
microfone — os manifestantes romperam o cordão de isolamento da policia
militar!
BAM!
Ouço uma explosão vinda lá da frente o
repórter está no chão, manifestantes correm alguns de volta outros mais para
perto da assembléia, fumaça se ergue e se espalha rápido pelo ar, meu rosto
começa a arder.
— Puta que pariu! — eu grito — nós
ficamos muito perto cara! — eu grito para bruno.
Ouço algo vindo do carro de som, mas
não entendo o que é meus tímpanos estão zunindo por conta da explosão, vejo
gente gritando e correndo, meu coração começa a bater no peito tão forte que
chega a doer.
“BAM” “BAM” “BAM” ”BAM” “BAM” “BAM”...
Por um segundo acho que são as batidas
de meu coração, meu sangue gela quando me dou conta que não é, penso que são
explosões, mas são mais fracas.
— O choque ta descendo! — bruno grita
saindo correndo, ele já esta com a camiseta protegendo as vias aéreas.
Então reconheço, não são explosões, já
havia ouvido algo parecido em minha imaginação enquanto lia, Bernard Cornwell
descrevendo batalhas medievais onde guerreiros marchavam batendo lanças em
escudos de madeira, mas desta vez não era imaginação. O choque avançava
marchando, com seus cassetetes batendo em seus escudos em ritmo militar.
“BAM” “BAM” “BAM” ”BAM” “BAM” “BAM”...
— Recuem! — ouvi a voz do carro de som
desta vez de um homem — não enfrentem! Recuem! Não estamos aqui para apanhar do
choque! Recuem! Não joguem nada! Levantem as mãos! Recuem!
Muitos começaram a correr, para trás,
para o lado, mas ninguém para frente. Muitos se mantinham parados no meio da
rua de mãos levantadas. Vi uma pessoa caindo no asfalto, na certa atingido por
uma bala de borracha. Mais explosões e
tiros, topei com uma arvore e se escondi atrás dela, bruno ficou ao meu lado.
— Acho que posso dar adeus a ideia de
ir inteiro para aquela entrevista amanhã — falo olhando para a cena a minha
frente.
— Fica tranquilo cara — bruno responde
— o choque só vai refazer o cordão, viu quanta gente tem aqui? O governador não
é louco de mandar a policia descer o cacete em todo mundo!
Uma moça vem correndo com uma mascara
no rosto, ela esta mancando, e, quando chega mais perto, reparo que a mascara
não serviu de muita coisa, ela tossia violentamente!
— Você está bem? — pergunto quando ela
fica ao nosso lado.
— Eles estão loucos! — ela gritou
rouca em resposta.
O batalhão de choque continuava a vir
da assembléia, agora paravam de marchar quando estavam mais próximos dos
manifestantes que continuavam na rua pararam de marchar e avançavam de vagar atrás
dos escudos.
— Isso vai virar uma chacina! — a moça
continuou ainda rouca, então se converteu em um espasmo de tosse.
— Sem violência! — gritava o homem do
carro de som — nós não estamos armados! Recuem! Não enfrentem! sem violência
comandante! Por favor nós não somos criminosos! Somos trabalhadores!
Vi uma mulher correr em direção a
formação do choque, e sentar-se no asfalto um pouco a frente, ela fez sinal
para que outros se juntassem a ela, mas não ouve tempo para isso, um soldado
saiu da formação, ergueu o escudo por cima da cabeça da mulher e desceu dando
um golpe que a atingiu nas pernas.
— Que é isso! — gritei revoltado,
enquanto ele continuava a desferir mais golpes, a formação logo se fechou ao
redor do agressor e sua vitima, o soldado puxou a mulher e a arrastou para
dentro da formação, e a parede de escudos se fechou — que absurdo! — gritei.
— Canalha! — ouvi bruno gritar também.
— Covardes! — ouvia do carro do som —
sem violência! Nós educamos seus filhos! Sem violência!
Os professores recuavam, os policiais
avançavam, as bombas explodiam, as balas voavam. A fumaça que impregnava o ar
tornava difícil a respiração.
“ TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ...”
Ouvi um som por cima de tudo, ele
continuava, o vento se agitou, folhas voavam da arvore que usávamos de abrigo,
olhei para cima.
— Ai está o seu helicóptero! — falei
para bruno apontando para o céu.
— Ué o governador já ta fugindo? — ele
perguntou.
— Não — ouvi a resposta da moça ao
nosso lado — o sacana está vendo tudo do alto do palácio Iguaçu! — ela nos
mostrou uma foto no celular, era do facebook, alguma tal de Lucy tinha postado
o link de uma manchete do portal Paraná. A pagina se atualizou e li outra
manchete, com a foto de um homem com a mão sangrando, a manchete dizia “
Deputado mordido por cão da PM ao tentar sair da assembléia”.
— Acho que temos a resposta do que os helicópteros
vieram fazer aqui então — Bruno começa a falar.
— Os? — pergunto confuso, a ardência nos
olhos aumenta.
— Tem dois — ele aponta para o alto,
eu olho para onde ele esta apontando e vejo que dois helicópteros descem
fazendo vôos rasantes, e despejam bombas de gás no meio da multidão.
— Não acredito que isso está
acontecendo — murmuro para mim mesmo. Uma bomba explode ao meu lado, Bruno cai
ao chão com o rosto sangrando e gritando de dor, estilhaços da bomba acertaram
o rosto dele — você está bem? — pergunto, ele está com o rosto sangrando e esta
gritando que pergunta idiota foi a minha.
— Temos que sair daqui — ele grita em
resposta.
— Você consegue andar? — pergunto a
ele que se levanta.
Mais pessoas passam correndo por onde estávamos,
muitas sangrando, machucadas, vi um professore que um dos olhos estava inchado
e de um tom vermelho escuro que me deu arrepios.
O ar estava cheio de gás lacrimogêneo
e de pimenta, mas os olhos que lacrimejavam em todos ali, não era por isso. Não
vivi na ditadura militar, mas me senti em uma, “ e foi assim que no centro Cívico da capital morreu a democracia do
estado” pensei.
Mais bombas explodiram ao meu redor, Bruno
se levantou gritando de dor, a moça que estava ali ao nosso lado o ajudou o
segurando de um lado eu de outro, os policiais continuaram avançando, vi muitas
pessoas caindo no chão vitimas de balas de borracha na certa, meu corpo ficou instável
como o clima de Curitiba, fervilhou, com a raiva que sentia, ficou frio logo
depois com o medo que as explosões causaram, depois fervilhou novamente ainda
pelo medo que sentia.
— Ai droga, isso realmente dói — bruno
praguejou — por falar nisso, qual é o
seu nome? — ele perguntou para a moça que o ajudava.
— Bruna — ela falou ainda com a voz
rouca.
— Não me diga! — ele riu, depois
gritou novamente, o sangue escorria por sua face — vamos logo sair daqui, acho
que posso correr obrigado.
— Tem certeza? — perguntei.
— Sim! Corram! — ele iniciou a corrida
e nos puxou junto, um soldado que batia em um manifestante a dez metros de nós
resolveu mudar de alvo e veio atrás de nós.
— Sem violência! — gritava os
auto-falantes do carro de som — nós não estamos mais na frente da assembléia —
a mulher voltara a falar no microfone, e implorava para que parassem o ataque. Mas
a policia continuava.
O ar estava nublado de fumaça, meus pulmões
já quase não conseguiam tragar o oxigênio minha visão estava turva, a pele
queimava, os olhos lacrimejavam, e os tiros continuavam, passamos por diversas
pessoas ajoelhadas em sinal de rendição, então aquela dor.
— Ai Caral** — gritei ao cambalear
para frente, senti uma dor na coxa e esfolei minha Mão na queda.
— Fernando! — Bruno voltou para me
ajudar.
— Ai! — agora era minha vez de gritar
de dor, eu sentei no chão e agarrei minha coxa, havia um rasgo na parte de trás
da calça, minha mão tocou a parte dolorida, um espasmo viajou por todo o
sistema nervoso e chegou a cérebro, olhei meus dedos estavam sujos de sangue.
— Bala de borracha cara — bruno puxou
meu braço para que eu levantasse — vamos temos que sair daqui, vamos ser
pisoteados pelos caras se não sairmos.
— Sem violência, por favor! — gritava
a voz do auto-falante — deixem as ambulâncias passarem!
Levantei, senti uma dor terrível ao
apoiar a perna direita no chão, mas corri mesmo assim. Pessoas passavam de um lado a outro, a rua
era um terror.
— Para lá — gritou Bruno ao passar por
um grupo de pessoas que voltavam para a praça — não adianta ficar aqui, temos
que sair daqui!
— Ir para onde? — respondeu um homem
do grupo — estamos encurralados, estão jogando bombas de todos os lados! Dos helicópteros,
de cima dos prédios... — uma explosão ali perto nos impediu de ouvir o que ele
dizia. Senti uma garoa fina começar a cair, depois um jato de água, foi quando
percebi que o batalhão de choque já estava quase em cima de nós e o caminhão
blindado que vinha atrás despejava água para cima de nós.O grupo de pessoas continuaram
seu caminho, nós o nosso.
— Para onde vamos? — perguntei para Bruno,
estava se esforçando para acompanhar o ritmo de corrida dele, sentia o sangue
escorrer por minha perna.
— Ali — ele apontou para um ponto de ônibus
perto de onde estávamos.
— Está louco? — falei para ele
—ficaremos encurralados lá.
— Cara, olha em volta! Você mesmo
ouviu, não temos para onde ir, e você vai perder a perna se continuar a correr
de um lado para outro, precisamos de um abrigo.
— Entra! Entra! — gritavam as pessoas
lá de dentro do ponto, era um dos pontos de ônibus de vidro preto da capital,
em um formato de cilindro deitado, não sei como consegui pular a catraca, mas
consegui lá dentro o ar estava mais puro, haviam pelo menos cinco pessoas ali
dentro, e algumas choravam.
— Vocês estão feridos? — perguntou um
homem quando nós entramos.
— Nada muito grave — respondi lutando
para manter a voz firme — levei um tiro de borracha na coxa.
— Um estilhaço me acertou a cara — Bufou
bruno ao meu lado.
As bombas continuavam do lado de fora,
quase não conseguia ver nada do lado de fora do ponto de ônibus.
— Ai que raiva — murmurou Bruna,
batendo na própria coxa de frustração — “A bomba é lá fora, o que acontece lá
fora é problema da secretaria de segurança publica não desta assembléia, nós
continuamos a votação” diz o presidente da casa... — ela lê de seu celular mais
um post do facebook.
— Esses miseráveis — falou o homem que
estava ao nosso lado — querem pegar o nosso dinheiro ao custo do nosso sangue!
— ele dá as costas para nós e vai para o outro canto da sala acalmar uma das
mulheres que soluçava desesperada.
Via pessoas passando correndo pelo
ponto em desespero, ouvia tiros, explosões e
sirenes, e os gritos de clemência do carro de som, os helicópteros que
continuavam a sobrevoar o centro, aquilo parecia uma cena de guerra, ou melhor
um massacre.
— Eles estão vindo! — gritou Bruna
desesperada — eles estão vindo! — soldados do choque desciam a rua e estavam próximos
ao ponto onde estávamos, atiravam para todos os lados.
— Calma guria — Bruno a abraçou — eles
não são monstros, não vão entrar aqui — ele falou seguro, mas me olhou com
incerteza.
No fim ele teve razão os soldados
passaram por nós sem fazer nada, mas um minuto depois o vidro se rachou em um
estouro, todos gritaram de susto, algo caiu no chão rolando.
— Uma bola de gude! — Bruno reconheceu
— a borracha acabou seus desgraçados? — ele gritou para ninguém.
— Meu deus, quando isso vai acabar? —
perguntei para mim mesmo.
— Esses miseráveis, dão sorte que são
professores ai fora! — murmurou Bruno — duvido que outro tipo de cidadão iria
ter o sangue frio de não reagir em uma situação como esta — eu concordei — você
veio no protesto de junho? — ele me perguntou.
— Não, eu não morava aqui ainda —
respondi.
— Quando a policia veio para cima de
nós, nós só revidemos, eu tenho orgulho da dignidade desses professores ali
fora, mas acontece que neste país, não adianta fazer protesto pacifico, tudo
acaba em sangue, se bem que daquela vez tão nada mudou igual— ele deu de ombros
— a democracia é algo que só existe no papel mesmo.
Lá fora a confusão continuava.
— Comandante, o gás está se espalhando
pela região, já atingiu uma creche aqui perto, reforçamos o pedido! Parem com
essa loucura! Parem com essa violência! — a mulher no carro de som continuava a
falar, e as bombas também não cessavam.
***
— Ai meu deus Nando! — Ane me recebe
quando passo pela porta do apartamento — que bom que chegou, eu estava
preocupada, você está bem?
— Não — respondi a ela, tinha passado
no pronto socorro e tinham feito um curativo na minha perna, mas não era a isso
que eu me referia — estou com o espírito quebrado.
— Ai Jesus — Marlon vem logo atrás de
Ane — nós vimos tudo pela TV, o que foi aquilo!
— Um massacre — respondi — foi isso
que foi.
— Você está sangrando? — perguntou
Ane, Marcelo passou a frente dela e de Marlon, parecia preocupado, colocou o
dedo na mancha de sangue seco no meu couro cabeludo.
— Não, nossa, acho que essa é a
primeira vez que você chega em casa sujo de sangue e o sangue não é seu! — eu
bato na mão dele, e vou mancando até o sofá, eles me seguem — Cara você ta um
bagaço — meu primo continua — se esqueceu que amanhã você tem uma entrevista de
emprego?
— Pode ficar tranquilo — respondo para
ele — eu só apanhei do pescoço para baixo, como você disse esse sangue não é
meu, estou inteiro para amanhã.
— Então — Ane começa — como foi ser revolucionário?
Doeu muito as cacetadas? — eu a olhei sério.
— O que doeu mais foi o peito, foi ver
como os professores são tratados neste estado — eu comecei a falar — ver
pessoas apanhando da policia sem ter feito nada de errado, nunca tive problema
com a policia, nunca nem fui revistado, se um dia tiver filhos, como vou falar
que a primeira vez que apanhei da policia foi defendendo algo que era certo?
“ Não quero ser professor, mas imagino
como é que aqueles que estavam naquele campo de guerra hoje vão entrar na sala
de aula, e falar de justiça e democracia se passaram por tudo isso! Penso que o
dever do educador não é dizer o que o aluno deve pensar, mas ajudá-lo a pensar
por si próprio, agora me diga como é que o professor vai fazer isso sabendo que
neste pais é melhor ser ignorante! Pois se você parar para pensar você irá
passar raiva ao saber de tudo o que está errado e por nunca ver nada mudar! E pior,
se você vai cobrar mudanças, você é tratado como lixo! Como marginal!”
“ Olha, meu vocabulário não é tão
pobre assim, mas ainda assim não tenho palavras para descrever o que estou
sentindo, um misto de indignação, revolta, raiva e acima de tudo, tristeza”.