Ele olha para o espelho. Coisa
que não costuma fazer, pois o reflexo lhe mostra algo que o desanima. Agora, no
entanto, ele faz e ignorando todo o resto olha fixamente para seus olhos,
aqueles olhos escuros pela maldição amarelos. Com curiosidade ele olha, no fundo de seus
olhos aquelas sombras que dançam. As sombras rodopiam e saltitam uma em direção
a outra, e como em um passe de mágica, seja por visão de outras vidas ou a mera
maldita imaginação, ele reconhece nelas dois homens.
A paisagem era deserta, o capim
alto dançava com o vento. Era a beira de um precipício, a muitos metros abaixo
havia uma plantação de trigo. Um homem sentava em uma rocha em meio ao capim,
ele era Hankor o senhor daquelas terras. Foi com muita luta que conseguiu o
domínio sobre elas, e com mãos de ferro a governava. Não era mau, não ao menos
no sentido que dão a esta palavra, era apenas um produto do bem; algo que
foi transformado endurecido pelo fogo assim como o aço.
Lemore era seu vassalo, um dia
isso já fora o contrário, mas a guerra sempre muda as coisas. Hankor deixava
seu vassalo livre para governar a parte que lhe cabia de suas terras, mas as
vezes a ambição crescia no âmago de Lemore, e Hankor tinha que intervir para não
perder seu reinado. Hankor observava Lemore se aproximar no horizonte distante,
ele conduzia seu cavalo em uma marcha lenta.
Fazia muito tempo desde o último confronto.
Mas eles eram até que frequentes. Hankor era como um pai e Lemore um filho
arredio. No momento que Hankor decidia intervir ele não movia exércitos,
tampouco seu rival o fazia, ambos concordavam que isso seria um desperdício de
vidas, em vez disso quando Hankor se decidia um corvo entrava pela janela dos
salões de Lemore o convocando para o duelo.
Agora o tilintar da armadura de
Lemore era audível e ressoava seguindo o ritmo dos passos de seu cavalo. E
então Hankor se levanta da pedra onde estava sentado. Ele usava sua armadura de
combate completa, era toda tingida de pixe, negra como a mais escura pena de um
corvo. Lemore também usava uma armadura, mas esta era prata e polida a
ponto de refletir a luz do sol. Usava também uma capa vermelha que caía pelo
lombo do cavalo cinza. Ele parou a menos de dez metros de seu oponente e
desmontou. O cavalo bem treinado saiu a galope para longe dos dois indo pastar
mais ao longe.
─ Está atrasado ─ Hankor quebrou
o silêncio olhando fixo para o outro, ele estava parado imóvel apoiando todo
seu peso no cabo do machado de guerra de duas laminas que deixara em frente ao
corpo.
─ Cheguei na hora que pretendia.
─ Lemore respondeu com azedume. Então seguiu-se mais silêncio.
─ Faz tempo desde a última vez ─
Hankor começou ─, mas como sempre nos encontramos novamente aqui.
─ Desta vez será diferente.
─ Você não entende, não é? ─
Hankor murmurra lamentando.
─ O que?
─ Não entende que eu tento
proteger-te? ─ Lemore ri alto ─ pobre criança, acha que é forte suficiente para
as demandas do mundo?
─ Eu sei que sou. Maldito! ─ Lemore
grita em resposta. Hankor sorri.
─ Seu estúpido, o mundo além de
nossas fronteiras te fariam de lanche, você sabe que Não é páreo para eles, e
mesmo assim abre a porta para os estrangeiros?
─Trouxe suas armas? ─ Lemore
pergunta rangendo o maxilar. Hankor gira o machado pelos flancos do corpo ─
Isto? ─ Lemore gospe no chão em sinal de desprezo ─ uma arma de bárbaro.
─ Desta vez, como tu disseste
serás diferente ─ Hankor fala apoiando o machado no chão novamente. ─ desta vez
abrirei sua cabeça e colocarei juízo lá dentro de uma vez por todas.
─ Você poderá tentar ─ Lemore
responde o desafio. Ele abre as grevas da ombreira deixando a capa cair do
chão. Hankor fecha a viseira de seu elmo e antes que a capa de Lemore chegue ao
chão os dois iniciam corrida.
Lemore desembainha a espada em
meio à corrida. O aço extremamente afiado reflete o sol como sua armadura. A dois
passos de se chocarem Lemore força o pé direito no chão como apoio leva a espada
para trás e gira o corpo a trazendo para frente em um arco destinado a golpear
seu oponente na barriga. Hankor para este golpe com a face do machado, faíscas
saem do choque junto ao som do aço batendo em aço. Hankor é rápido com o
machado e o gira atingindo Lemore no rosto com o cabo de salgueiro da arma, o
oponente cambaleia para trás, mas Hankor não vai atrás.
Nenhum dos dois fala nada. Lemore
gospe sangue e fecha a vizeira do elmo. Os dois começam a andar em círculos. Um
avaliando o outro. Foram tantos duelos que um já sabia de cor o movimento do
outro. Lemore era rápido, mas não calculava seus movimentos, ao contrário de
Hankor que era o maior dos dois, e mais forte. Embora ambos tivessem
habilidades parecidas o segundo sabia que Não podia competir em velocidade do
outro. Hankor era forte, mas Lemore calculava que aquele machado devia pesar
horrores até mesmo para ele, e logo se ele conseguisse evitar os golpes
poderosos este iria se cansar.
Hankor cansado de esperar se
aproximou para o próximo ataque gritando. Ele girou o machado em um golpe à
frente e Lemore apenas se abaixou para desviá-lo, mas não teve nem tempo de
contra-atacar, pois o cabo do machado já descia em direção a sua cabeça, desta
vez ele desviou este golpe com a espada tirando lascas de madeira. Mais um
golpe à esquerda e outro à direita os dois esquivados. Hankor então recuou, pois
Lemore estava certo o machado era pesado e ele sabia que se continuasse assim logo
se cansaria.
Foi então a vez de Lemore
avançar, descrevendo golpes furiosos e rápidos que o homem na armadura negra
quase não conseguia bloquear. A cada golpe uma praga. A respiração de Hankor já
ficava pesada. Embora o sol estando baixo como estava e não fazendo muito calor
naquela hora os dois suavam dentro das armaduras.
Lemore recuou três passos
gargalhando, Hankor não o perseguiu apoiou o machado no chão e respirou por um
momento calmamente.
─ Já cansou? Porco! ─ Lemore
havia aberto a viseira do elmo para entrar um pouco de ar, pois não iria
admitir, mas também estava cansado.
─ Eu ainda nem comecei ─ Hankor o
responde, sua voz sai abafada por conta do elmo.
Lemore baixa a viseira e vai para
outra sequência de golpes. Seu oponente o espera parado, se esquiva do primeiro
golpe e bloqueia o segundo com a cabeça pesada do machado jogando a arma do
rival para cima, a potência deste golpe foi tamanha que a espada quase escapa
das mãos enluvadas de Lemore e antes que ele pudesse se recuperar o cabo de
salgueiro do machado já o atingia nas costelas. O homem de armadura reluzente
cambaleia gemendo sentindo a dor de pelo menos uma costela trincada.
Hankor vai atrás de Lemore com a
intenção de acabar logo com aquilo, ele não queria dar a chance do oponente se
recuperar. Ele leva o machado para um golpe que partiria o corpo de Lemore em
dois, se tivesse o acertado, mas o outro consegue se esquivar. O machado nem
termina um circulo completo quando seu dono faz com que ele volte em outro
golpe potente. Lemore tenta bloquear este com a espada, mas o golpe é muito
forte, e o sabre voa de suas mãos. Em contra partida o machado já descrevia
outro circulo no ar, sem saída, Lemore joga o corpo para a direita afim de
esquivar este golpe, que passa por ele sem o atingir. Lemore vê ali uma brecha
e tenta golpear Hankor com o cotovelo, mas é impedido. O machado estava de
volta e o golpeou novamente nas costas quebrando de vez sua costela partida.
Lemore rola no chão urrando de
dor e lutando pelo ar. Hankor pausa o ataque.
─ Por que você ainda tenta? Quando
é que você ira aprender a lição? ─ Hankor pergunta para o oponente que se
contorce de dor ─ você nunca vai voltar ao que era. Eu não permitirei.
─ Calado! ─ Lemore resmunga entre
os dentes, com o pouco de ar que consegue reunir, era como se tivesse uma faca
cravada no peito, a cada respiração sentia uma pontada que lhe chegava até as
tripas.
─ A única maneira de me derrotar
é me matando, e sejamos francos, você não tem força para isto.
─ Se a morte é o preço ─ Lemore responde
juntando todas suas forças e ignorando a dor se rasteja rapidamente para onde
sua espada estava. Hankor vai atrás gargalhando, girando o machado nos flancos
do corpo ─ é o que farei.
─ Como fará isso se nem ao menos
consegue respirar? ─ Lemore fecha as mãos no punho da espada ─ vamos meu caro,
renda-se; expulse ela de minhas terras e tudo voltara ao normal.
─ Nunca! ─ Lemore se levanta
correndo, a adrenalina impede que ele sinta a dor e a luta recomeça.
Uma tempestade de golpes partem
em direção a Hankor, cima; baixo; baixo direita; cima esquerda. A espada de Lemore
é um borrão cintilante. Mas o machado de Hankor contra todas as possibilidades
consegue a acompanhar embora ele vá perdendo terreno. Hankor finge estar
assustado e sai correndo quando Lemore joga seu jogo de pés para a esquerda,
seu temperamento impulsivo não o deixa perceber que se tratava de uma armadilha
─ afinal quem em sã consciência fugiria para a beira de um precipício? ─ e Lemore
sai em perseguição a Hankor seduzido pela idéia de pegá-lo pelas costas, mas
assim que os dois chegam nas rochas Hankor para subitamente e acerta com o cabo
do machado na placa de peito de Lemore que cuspiu sangue na viseira fechada do
elmo. Como um bom dançarino Hankor gira o corpo passando o machado rente ao
chão. A cabeça curva do machado de duas faces se prende em um dos pés de Lemore
que com um puxão do inimigo vem ao chão, seu elmo se desencaixa e rola no chão
com o impacto da queda.
─ Renda-se! ─ murmurra Hankor, o
homem caído não responde nada ─ renda-se ─ Hankor repete abrindo a viseira do elmo,
mas ainda não tem resposta ─ renda-se ou morra! ─ Hankor levanta o machado, sem
receber resposta alguma começa a descer a arma, Lemore bloqueia a lamina desta
a poucos centímetros do próprio pescoço. O homem caído teve que segurar na
lamina da ponta de sua espada para bloquear esse golpe o que abre um profundo
corte em sua mão por onde o sangue escorre quente e pegajoso.
Hankor começa a pressionar a arma
para baixo com o peso de seu corpo e Lemore começa a ceder. Sem esperança ele
vira o rosto de lado, e é então que vê no horizonte, o sol se punha a oeste
tingindo de vermelho o trigo de base dourada. Para alguns isso poderia servir
de mau agouro; poderia significar o
sangue derramado na terra, mas para Lemore isso o lembrou da princesa que havia
conhecido, lembrar da mulher que servira de gatilho para aquele duelo e isso
lhe deu mais força.
Lemore cedeu um pouco fazendo com
que Hankor se desequilibrasse com a pressão que exercia para baixo, e juntando
toda a força que ainda restava em seu corpo forçou a espada em um arco para traz
fez com que a arma do oponente saísse de suas mãos e caísse em direção as
plantações de trigo lá em baixo. Antes que seu oponente se recuperasse do
espanto e tentasse algo enquanto ele encontrava-se em uma posição vulnerável, Lemore
chutou Hankor no peito que cambaleou para trás.
─ Acabou ─ Lemore falou ofegante
enquanto se levantava ─ você está sem arma. Fique e morra como homem, ou corra
e morra como um covarde.
─ Sua vista está cansada? ─ Hankor
sorri nervoso tentando esconder o espanto de ter perdido seu machado para alguém
caído, ele desembainha do sinto da espada um sabre curto. Quase comparável a
uma faca de caça. Lemore gargalha.
─ Vai mesmo querer lutar com
isso? De uma arma de bárbaro a uma de criança?
─ Para abater um meio morto ─ Hankor
joga a faca de uma mão a outra testando o equilíbrio da arma ─ ela servirá.
Lemore recomeça a luta, sua
espada longa agora é que tinha a vantagem, ele atacava de longe do alcance da
faca de Hankor que só podia defender os golpes. Cima esquerda; baixo direita;
um; dois; três. Lemore agora atacava de todos os lados, seu jogo de pés mudava
da esquerda para a direita, e de novo para a esquerda desferindo golpes atrás de
golpes, mas Hankor estava esquivando a todos. Lemore deu uma finta a esquerda e
desceu a espada pela esquerda passando o fio do aço pela abertura do gorjal da
armadura de Hankor que gritou de dor enquanto a espada mordia a carne. Lemore não
desperdiçou a oportunidade jogou a espada para trás e a trouxe em um arco que
atingiu o oponente no peito. O golpe fora com a base da espada, portando a
armadura negra absorveu o impacto, mas Hankor teve que recuar quatro passos
para trás.
Os dois se entreolharam por um
momento. O sol a essa altura já havia se posto totalmente e as primeiras
estrelas surgiam no céu. E os dois combatentes correram um na direção do outro.
Ambos estavam de armadura de combate, mas não existe armadura que consiga parar
o golpe certeiro da ponta de aço. Hankor sentiu primeiro, mas logo sua faca
também penetrou a camada de aço da placa de peito da armadura de Lemore e os
dois sentiram o aço frio penetrando o peito e perfurando o coração. Os dois
homens sentiram o ar fugir de seus pulmões e o sangue quente do inimigo
atingir-lhes a face.
Neste momento ele que observava
tudo de um espelho, sentiu a falha em uma respiração, e sentiu algo no próprio rosto.
E enquanto observava a lagrima rasgar o rosto, pensava quando é que ela iria
virar sangue.